Pr Ed Rene Kivitz |
Então
mandaram um recado a José, dizendo: "Antes de morrer, teu pai
nos ordenou que
te disséssemos o seguinte: ‘Peço-lhe que perdoe os erros e
pecados de seus irmãos que o trataram com tanta maldade! ’ Agora,
pois, perdoa os pecados dos servos do Deus do teu pai". Quando
recebeu o recado, José chorou. Depois vieram seus irmãos,
prostraram-se diante dele e disseram: "Aqui estamos. Somos teus
escravos! " José,
porém, lhes disse: "Não tenham medo. Estaria eu no lugar de
Deus? Vocês
planejaram o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem, para que hoje
fosse preservada a vida de muitos. Por isso, não tenham medo. Eu
sustentarei vocês e seus filhos". E assim os tranqüilizou e
lhes falou amavelmente.
José permaneceu no Egito, com toda a família de seu pai. Viveu
cento e dez anos (Gênesis 50:16-22).
Alguém
já disse que a família é o lugar dos maiores amores e dos maiores
ódios. Compreensível: quem mais tem capacidade de amar, mais tem
capacidade de ferir. A mão que afaga é aquela de quem ninguém se
protege, e quando agride, causa dores na alma, pois toca o ponto mais
profundo de nossas estruturas afetivas. Isso vale não apenas para a
família nuclear: pais e filhos, mas também para as relações de
amizade e parceria conjugal, por exemplo.
Em
mais de vinte anos de experiência pastoral, observei que poucos
sofrimentos se comparam às dores próprias de relacionamentos
afetivos feridos pela maldade e crueldade consciente ou inconsciente.
Os males causados pelas pessoas que amamos e acreditamos que também
nos amam, esses males são quase insuperáveis.
O
sofrimento resultado das fatalidades são acolhidos como vindos de
forças cegas, aleatórias e inevitáveis. Mas a traição do
cônjuge, a opressão dos pais, a ingratidão dos filhos, a rixa
entre irmãos, a incompreensão do amigo, nos chegam dos lugares
menos esperados: justamente no ninho onde deveríamos estar
protegidos se esconde a peçonha letal.
Poucas
são minhas conclusões, mas enxerguei pelo menos três aspectos
dessa infeliz realidade das dores do amar e ser amado. Primeiro,
percebo que a consciência da mágoa e do ressentimento nos chega
inesperada, de súbito, como que vindo pronta, completa, de algum
lugar. Mas quando chega nos permite enxergar uma longa história de
conflitos, mal entendidos, agressões veladas, palavras e comentários
infelizes, atos e atitudes danosos, que foram minando a alegria da
convivência, criando ambientes de estranhamento e tensões, e
promovendo distâncias abissais (abismo profundo).
Quando
nos percebemos longe das pessoas que amamos é que nos damos conta
dos passos necessários para que a trilha do ressentimento fosse
percorrida: um passo de cada vez, muitos deles pequenos, que na
ocasião foram considerados irrelevantes, mas somados explicam as
feridas profundas dos corações.
Outro
aspecto das dores do amar e ser amado está no paradoxo das razões
de cada uma das partes. Acostumados a pensar em termos da lógica
cartesiana: 1 + 1 = 2 e B vem depois de A e antes de C, nos
esquecemos que a vida não se encaixa nos padrões de causa e efeito
do mundo das ciências exatas. Pessoas não são máquinas, emoções
e sentimentos não são números, relacionamentos não são
engrenagens. É ingenuidade acreditar que as relações afetivas
podem ser enquadradas na simplicidade dos conceitos certo e errado,
verdade e mentira, preto e branco. A vida é zona cinzenta, pessoas
podem estar certas e erradas ao mesmo tempo, cada uma com sua razão,
e a verdade de um pode ser a mentira do outro. Os sábios ensinam que
"todo ponto de vista é a vista de um ponto", e
considerando que cada pessoa tem seu ponto, as cores de cada vista
serão sempre ou quase sempre diferentes. Isso me leva ao terceiro
aspecto.
Justamente
porque as feridas dos corações resultam de uma longa história,
lida de maneiras diferentes pelas pessoas envolvidas, o exercício de
passar a limpo cada passo da jornada me parece inadequado para a
reconciliação. Voltar no tempo para identificar os momentos
cruciais da caminhada, o que é importante para um e para outro,
fazer a análise das razões de cada um, buscar acordo, pedir e
outorgar perdão ponto por ponto não me parece ser a melhor
estratégia para a reaproximação dos corações e cura das almas.
Estou
ciente das propostas terapêuticas, especialmente aquelas que sugerem
a necessidade de re-significar a história e seus momentos
específicos: voltar nos eventos traumáticos e dar a eles novos
sentidos. Creio também na cura pela fala. Admito que a tomada de
consciência e a possibilidade de uma nova consciência produzem
libertações, ou, no mínimo, alívios, que de outra maneira
dificilmente nos seriam possíveis. Mas por outro lado posso
testemunhar quantas vezes já assisti esse filme, e o final não foi
nada feliz. Minha conclusão é simples (espero que não simplória):
o que faz a diferença para a experiência do perdão não é a
qualidade do processo de fazer acordos a respeito dos fatos que
determinaram o distanciamento, mas a atitude dos corações que
buscam a reaproximação. Em outras palavras, uma coisa é olhar
para o passado com a cabeça, cada um buscando convencer o outro de
sua razão, e bem diferente é olhar para o outro com o coração
amoroso, com o desejo verdadeiro do abraço perdido,
independentemente de quem tem ou deixa de ter razão. Abraços criam
espaço para acordos, mas a tentativa de celebrar acordos nem sempre
termina em abraços.
Essa
foi a experiência entre José e seus irmãos. Depois de longos anos
de afastamento e uma triste história de competições explícitas,
preferências de pai e mãe, agressões, traições e abandonos,
voltam a se encontrar no Egito: a vítima em posição de poder
contra seus agressores. José está diante de um dilema: fazer
justiça ou abraçar. Deseja abraçar, mas não consegue deixar o
passado para trás. Enquanto fala com seus irmãos sai para chorar, e
seu desespero é tal que todos no palácio escutam seu pranto. Mas ao
final se rende: primeiro abraça e depois discute o passado. Essa é
a ordem certa. Primeiro, porque os abraços revelam a atitude dos
corações, mais preocupados em se (re)aproximar do que em fazer
valer seus direitos e razões. Depois, porque, no colo do abraço
o passado perde força e as possibilidades de alegrias no futuro da
convivência restaurada esvaziam a importância das tristezas desse
passado funesto (infeliz, que
leva a morte).
Deus abençoe.
Pr. Ed René Kivitz
Ed René Kivitz é teólogo, escritor e pastor. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Seu livro Vivendo com propósitos, está na terceira edição, com mais de 30.000 cópias vendidas. Desde 1989 desenvolve seu ministério pastoral na Igreja Batista de água Branca, em São Paulo, Capital. Publicou também pela editora Mundo Cristão o livro Outra espiritualidade, já em sua 2ª edição. É casado com Silvia Regina, com quem tem dois filhos, Vitor e Fernanda. (http://www.mundocristao.com.br/autordet.asp?cod_autor=63)
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